quarta-feira, 20 de março de 2024

 

Rua da Glória



 O tempo escorria lento,

na rua da minha infância.

As murteiras perfiladas

testemunhavam, com flores miúdas,

brincadeiras de finco e de bolinhas de gude.

 

Casas de um só lado.

No outro moravam as boninas -

atavios coloridos - no cortejo das meninas,

que princesas coroadas,

desfilavam pela escada.


                                                                   A tarde ia chegando...

As brincadeiras de roda,

passar anel, pular corda

distraíam a meninada,

que escorregava grama abaixo,

em papelões e risadas.

 

Também o pic e as queimadas

faziam a nossa alegria,

tão simples, tão certa

como o raiar  de outro dia.



                                                               O cemitério, lá no alto,

metia um medo danado.

As procissões, apinhadas

de gente rezando e cantando,

eram espetáculo apreciado

das janelas enfeitadas

com toalhas bordadas,

 jarras com muitas flores

e plantas bem arrumadas.

 

O Santíssimo vai passar,

a rua foi decorada.

Arcos de bambus com flores,

chão pintado a cal, urucum e café.

 Cálices e cruz desenhados, arte das Aguiar,

esmero do amor e da fé.

A vizinhança era boa,

muito amiga e solidária.

Vovó Ziná nos alegrava

com seus biscoitos e doces,

sua fartura diária.

 

Dona Maria Aguiar

era toda uma doçura.

Distribuía rosquinhas

e de tudo o que fazia.

Quando matava um porco,

para cada casa um pedaço.

Mas a Elisa Teixeira

também jogava seu laço,

com gostosas empadinhas

e o conserto de sombrinhas.

 

E a Teresinha Aguiar

com flores presenteava

e com sorvete de calda

aos meninos agradava.


A Quitéria e a Socorro,

de imensa mansidão,

faziam doce de leite

para canudinhos e leilão.

 

A Rachel e a Amira,

simpatia e prosa aberta,

alegravam a nossa casa

com casos e risadas certas.

E o Dr. Amilar completava aquela festa.

 

O Padre Francisco, tão bravo,

na sua casa, um encanto.

Enchia nossas mãos de bala,

mais parecia um santo.

 


Papai, com seu bodoque

e bolotas em estoque,

assustava algum passante

e dava boas risadas.

Elogiava as moças,

sempre gentil e galante.

Mas de “rosa da Glória”

 a só uma ele chamava.

No seu coração esse espaço

 era da Adélia Passos.

 

A luz era bem fraquinha,

mas o céu era tão claro...

As serenatas chegavam

 e, de mansinho, as modinhas

os seresteiros cantavam.

 

Waldir ao violão

as músicas acompanhava.

Na cozinha lá de casa,

a turma se esbaldava.

Professor Abelar e siô Li,

senhor Atelante e Nedir,

Elisa e Zé Campinho,

vizinhança e amigos

furavam a madrugada

tomando vinho e café,

comendo sonho e pastel,

bolo e muita empada. 

Agora é só saudade...

da Glória e suas histórias,

daquela felicidade,

do que foi vivido e amado

e que ficou no passado,

vertigem da minha memória.

  

Celina Rabello – 20 de fevereiro de 2024.

 

 

 

 

 

 

 

 

 




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