sexta-feira, 6 de novembro de 2015



AÇÃO  PROCESSUAL





Eu vou te processar
por este sonho sofrido,
por este amor não vivido,
pelas perdas e danos,
por todos os desenganos
e por ter  te escondido
atrás de terras e mares,
sem nunca ter te mostrado,
 nem ter mandado notícias
 e nem sequer um retrato.

Eu vou te processar
pelos meus braços pendentes
à espera do teu abraço.
Pelas lágrimas pingentes
e pelos beijos  não dados.
Pelos entardeceres tingidos
de saudade  e soluços,
pelos regatos cantantes
e cachoeiras espumantes
deste tempo escorrido,
esgarçado e corroído
que nunca aproveitamos.




Eu vou te processar
por não ter acarinhado
o teu cabelo escuro,
crespo,  loiro ou ondulado.

Eu vou te processar
pelas músicas não dançadas,
pelas viagens ensaiadas,
pelas velas acesas
 e arrumadas com arte
em mesa grávida de espera.

Eu vou te processar
por não ter me mandado flores
e nem compartilhado as cores
de tuas vitórias e dores,
vividas em longas tramas
de doze meses por ano.



Eu vou te processar
e esta minha petição,
toda  manchada de lágrimas,
há de encontrar  razão
junto ao Juiz Maior e Divino,
 Aquele a quem os homens –
simples,  reis ou doutores –
dobram os próprios joelhos
e se prostram em adoração.
Criador e Salvador,
para Ele o amor,
resume todas as leis.

Como vais te defender
sem expor a tua face,
com tuas mãos tão vazias,
com teu discurso em branco
e o coração que nem bate?

Sem embargos à execução
da sentença judicial,
o teu delito requer
pena bem clara e expressa:
aparece, mostra teu rosto,
e diante do exposto
assume perante o mundo,
que nem mais um segundo
viverás longe de mim.


Por minha vez eu prometo
te cobrir de beijos e afagos,
por fim a esse litígio,
requerer a absolvição
para o teu feio delito
de deixar-me à beira do abismo
sem lua, sem  música, sem canção.

Ah! Amor da minha vida,
para ti me vestiria
de vinte anos, apenas,
despiria com as rendas,
a angústia desta espera.

Tu não fazes nem ideia
do que perdeste em carinho,
dos cuidados e mimos
só para ti  reservados.

Vem, de uma vez, sem demora,
meu coração apenas bate,
pelo fim deste embate,
e por quem rápido desate
as pontas desta distância,
mudando este descaminho
em ponte feita de abraços.



Celina Rabello – Belo Horizonte, 06/11/2015

quarta-feira, 16 de setembro de 2015



O ESCRITÓRIO



Havia uma porta fechada,
a mais aberta pra nós.
Atrás dela, civilizações perdidas,
filósofos, as letras, a fé,
a música, o Direito e o amor
eram vizinhos de parafusos,
das revistas “O Cruzeiro”, “Seleções”,
pregos, canivetes e da
caixa de pomada Minâncora. 


Estantes empoeiradas, o bureau  atulhado, 
o cofre do tamanho do desapego
e da  generosidade vicentina.
O rádio Philipps, boêmio da noite,
 sintonizava a BBC, de Londres,
aula prática, deleite, voo do ideal 
sob o comando da disciplina caracence.
 A cadeira giratória centralizava
a unidade - o viajante e a viagem.




Transpor a porta – discussão
entre a coragem, o desejo de colo e a timidez.
Mostrar o lado escuro para 
a testemunha que é  também a defesa.
Despir o pranto para um par de braços
 em acolhimento:
-Você ainda vai rir disso, filhinha.


Recolhi as relíquias paternas do amor.
Quando a decepção me assombra,
essas lembranças me agasalham.
Quando a tristeza chega à sala,
corro para o colo esculpido na memória.


O escritório tinha vida própria.
Ali estocávamos nossas certezas,
 nosso prumo e o aço da nossa âncora.
Vivia fechado, mas era tão aberto!
Vontade de saltar no tempo
e madrugar em música e poesia
porta a dentro.


Celina Rabello -  BH - 16/09/2015

sábado, 5 de setembro de 2015


PRIMAVERESCER 



Tem quinze anos a primavera,
as cores e a textura da flor-de-seda,
o cheiro tão doce quanto
o do manacá.


Às vezes, ciciante, lembra o vento
cantando no bambuzal.
Na sozinhez, seu silêncio
tem a brancura da dália do brejo.



Pululam, em seu corpo sazonal,
a inocência, o desejo, o lampejo
de coisas inatingíveis.


Não pressente que o verão vai
crestar sua cor, sua energia
de borboleta dançarina.



Azula o céu, perfuma o ar, 
matiza a coreografia das flores,
aviva a esperança, irradia vida.
Mal saída do casulo,
sente-se imperatriz do seu destino.


Vive, primavera, enquanto é tempo,
outras estações tocaiam atrás da porta.
Efêmera, transita como se eterna.
Infinita pelo pensamento,
sabe-se fugaz.
Jardim de contradições e paradoxos.
Quem mais bela?



Celina Rabello – 03/09/2015

domingo, 19 de julho de 2015




TEMPO 



  
Ao meu pai, Dr. José Rabello Campos, a quem nunca faltou 
" o engenho e a arte" . Pelo menos para os seus filhos e para aqueles
 com quem, amorosamente, conviveu cumprem-se as palavras
 do grande poeta Camões, na segunda estrofe de Os Lusíadas:
 “E aqueles que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando”. 


No princípio era o caos.
Amarrados à matéria-forma,
pulsamos no tempo,
essa presença recôndita em tudo.


Aprisionados em seu labirinto,
somos condenados a decifrar
o sino, o relógio, o cronômetro
e a esfinge.
A resposta envolve o tempo,
que escorre em emboscadas.




Malabaristas nas pinguelas
do  passado e do futuro,
com só um pé no presente,
habitamos um espaço
 que não é aqui.


Confundimos sentimento com relógio,
o apito com nossas entranhas,
o momento oportuno com o linear.
Profanamos o carro sagrado de Apolo
e somos devorados
pelo deus que comanda as horas.




Só toca o coração do tempo
quem descobre seus segredos -
tempo divergente, convergente e paralelo,
 fugitivo desapegado.
Sem compreendê-lo, sem aceitá-lo,
repetimos o tolo coelho de Alice:
“Estou atrasado, estou atrasado...”




A vertiginosa rede do tempo
abarca todas as possibilidades.
Somos no tempo, é inexorável,
porém, desejamos a eternidade.


Sem adentrarmos seu curso,
não existe o “carpe diem!”, 1
apenas um rio
de memórias e de sonhos.


Celina Rabello -16/07/2015



1. Expressão latina encontrada no poema "Odes" , de Horácio,  poeta romano,  e que significa "aproveite o momento", sem medo do futuro.



sábado, 30 de maio de 2015

LUZ


Abro as asas do dia.
Trezentos mil quilômetros
e um segundo:
risco o céu, rasgo véus,
posso incendiar a chuva.


Atônita de azul,
bêbada de claridade,
a manhã boceja e vacila,
surgida do opaco.



Sem estatuto de valia,
uma saudade hieroglífica
põe silêncio e quebranto
na beleza-menina do dia.


Faísco-lhe a barra da saia,
esquento-lhe o corpo alvacento.
Em vão atravesso o vento,
não toco o seu coração.


A manhã, beleza-menina,
toda vestida de brilho,
não perde a dor do olhar,
o roxo pinta o amarilho.


Avança a madureza do dia
e a sombra sem alarde,
sob o peso do quebranto,
turva meu brilho  na tarde.


Nas asas entorpecidas
do dia, que vira noite,
essa saudade vivida,
queimando como um açoite.


A noite, em metamorfose,
despe a casca do quebranto.
Faz amor com as estrelas
e adormece em acalanto.


Gira a roda da vida,
gesta outra esperança.
Novo ciclo, novo dia,
luz e sombra em aliança.


Celina Rabello – 27/05/2015

segunda-feira, 27 de abril de 2015

A FLORISTA DA RUA SÃO PAULO




Lá vem a moça sorridente,
com sua cesta de flores.
O sinal fecha, os carros param.
Ela oferece seus mimos a um, 
oferece a outro.
Não vejo ninguém comprar.


Moça, do céu, onde estão
os galãs, os apaixonados,
capazes de levar um botão de rosa
 para a amada?


Desapareceram?
Desertaram?
Ou se transformaram
 em bonecos virtuais?


Ah! moça, pena os homens
acharem esquisito receber flores...
Não fosse isso, juro que comprava
uma rosa para aquele homem
  na esquina, estático...
Tão sorumbático...
De olhar lunático...
Parece não ser deste mundo.
Ou sou eu a fora da órbita?



Celina Rabello – BH- 27/04/15

quinta-feira, 23 de abril de 2015



NA  ASA  DO  VENTO



Na asa do vento
giro, rodopio, decifro
no espaço e no tempo,
os enigmas.


Leve e livre, só brisa,
macia, fugidia,
guio meu navio
no fio do pensamento.


Vejo e aprecio,
do mar do firmamento,
a bombordo da vida,
as nuances desapercebidas,
os semitons do dia a dia.


E nessa viagem
no tempo e no vento,
ora da popa, ora da proa,
assumo o meu quintal-mundo,
o mundo que é o meu quintal.


Neste passo e compasso,
um rumo diferente eu traço
e viajo a outros terrenos.


Esse sonho e aventura
requer um outro mapa,
registro de novas atas,
silenciar a matraca,
esvaziar minha arca
e acolher sem julgar.


Para um novo bordado,
descobrir novas cores,
outro risco e matizes
em trama bem alvejada,
costurada e arrematada
por diálogo construtivo,
sincero, aberto e afetivo.


Guardei as minhas certezas,
libertei o aprendiz
humilde e curioso
e que vive sequioso
por conhecer nova gente,
transpor fronteiras e pontes
erguer marcos e arcos.



Minha arca esvaziada
para encetar a viagem,
volta agora abarrotada
de bem-querer e afagos,
em cada porto, conquistados.


Meu quintal ficou mais rico:
memórias cultivadas,
os afetos  semeados,
amores revisitados,
amizades ampliadas
nos laços que faço
na asa do vento,
no tempo e no espaço.  
  


Celina Rabello – BH - 16/04/15