segunda-feira, 4 de dezembro de 2017




SENHORA  DA  GLÓRIA





À minha mãe, Maria José de Aguiar Coelho, Maria Aguiar, 
a doce Senhora da Glória, 
do sobrado da Glória, da Rua da Glória.


Voltar pra casa,
buscar abrigo no regaço
soberano da Glória –
o conforto do colo e do afeto.


Sobrado e montanhas
num diálogo verde
desde o alvorecer.
Os olhos da casa perscrutam
 o interior cheio de vida,
o exterior pacato e pulsante.




As vozes ressoam em cada canto,
os sons ainda passeiam pelos cômodos.
Só não os ouve, quem nunca os ouviu.
A serenata na cozinha,
gritos pelos respingos da goiabada,
o crepitar da lenha no forno redondo,
o chiado do toucinho na fritura.
Maria Hermógenes, João Neco, a Bené,
Efigênia da Aurora, Gigi e Bié.
Tudo e todos compõem um movimento só,
uma orquestra só,
sob a batuta da Senhora da Glória.


Lep, lep, lep seus chinelos repicam,
firmes e certos, como o sino da Matriz.
Tão doce, decidida, tão serena.
Sua presença e o manacá roxeam
de perfume a casa toda.
Do escritório, conhecia o mistério.
As disparadas pelo corredor
ela abafava o quanto podia.


Mamãe, à direita, dançando com sua prima, Dª Heloisa


Debaixo do assoalho morava o assombro...
De madrugada, barulhos esquisitos.
- Papaiiiiii!
- São os cachorros, filhinha, em cima da lenha.
A comprida caixa escura hospedava as bananas.
E menino pedindo na porta: - Tem sobra? E banana?
Sempre tinha alguma coisa,
ninguém saía de mãos abanando.
-A fome bate é todo dia, filha. É preciso paciência.


O sábado chegava com arte e flores
para o jarro de prata .
-Posso ajudar, mamãe?
- Claro, filhota. Traz as rosas do tio Chico
 e as crisandálias da tia Tê.


Tão natural o amor, a alegria, a fartura,
a presença certa da segurança.
Tudo isso escorregou pelo tempo,
no coração, fotografia viva.
Hoje, um transbordamento...
Um instante em que deságuo esta saudade.
Ah! Senhora da Glória!...


Celina Rabello

Belo Horizonte, 1º de dezembro de 2017







segunda-feira, 6 de novembro de 2017




SEMENTE




Semente, sobrevivente
na correnteza escura
do rio noturno,
não desisto,
procuro o que não está aqui.




Cerro os olhos da noite,
calo o medo insistente,
destravo a porta da mente
e salto, de paraquedas, nos sonhos.

Entro nas cenas
que crio e recrio -
refúgio e abrigo.
Rumino e germino
da vida perdida,
negada, sonhada,
a semente persistente
que sobe o rio
e busca a nascente
da água corrente,
vital nutriente
da alma da gente. 



  
                         Semente andarilha                            
busco luzes no escuro  
deste rio sagrado
de resposta e armadilha.


Ele guarda as respostas
daquilo que busco:
princípio e sentido
da vida errante,
que começa e finda
na mina espumante
de jorro infinito.



A imagem em ação,
do norte, a estrela,
do afeto, o corrimão.
Chego à fonte do sentido
e broto em significados.





Celina Rabello - BH - 1º de novembro de 2017






terça-feira, 26 de setembro de 2017




IPÊS


Para Marcus Vinícius, meu filhinho, que fotografa

 as belezas de Belo Horizonte e valoriza as paisagens brasileiras.





Das janelas do trabalho, ardilosa,

mergulho nas flores dos ipês,

gazeteio  em diversos  tons de rosa,

 criando, para noivas, os bouquets.



Transeuntes sérios, apressados,

ignoram as copas em quermesse.

Robôs e pagantes alheados

não vêem os ipês, que em suas preces

celebram, com flores delicadas,

a vida que em beleza agradece. 
                                  
           




Espetáculo barroco e modernista,

gratuito, fortuito e singular,

jardim suspenso para a vista,

matiz rosado e sem par.





Passarinhos e o azul celeste

disputam a moldura deste quadro

que, pintado em nuances e finesse,

adornaria melhor aquele adro

de solitários ocupados a catar,

do passado, as doces lembranças

do que viveram e perderam e amaram.





Esta tela viva e sugestiva

transporta-me, em viagem imaginária,

a um tempo e idade bem festiva.

Atravessa-me e extravasa em poesia,

dos ipês, a beleza solitária,

de BH, as cores fugidias

a escorrer nas calçadas salpicadas.


Praça da Liberdade - Belo Horizonte


Celina Rabello – BH 25/09/17

quarta-feira, 16 de agosto de 2017




VAGAR




No meu vagar de pastora,
empino pensamentos,
colho, no reflexo das águas,
 memórias, sentimentos
e floresço em exclamações,
interrogações e reticências.


Aparece e se esconde,
senta-se ao meu lado
e foge em disparada
o ser das coisas,
o sentido da existência,
o mistério da vida.

Tela de Jullian Gallasch

A beleza e a finitude,
o eterno e o efêmero
olham-me, de través,
alternam risos e pranto,
 máscaras e verdade,
num rodopio circular,
numa dança carnavalesca,
paradoxo entre a natureza e a razão.
O eterno retorno versus
a linearidade própria de Athená:
 concentração, desfile e apoteose.


Marcham, solenemente,
sucedem-se em continência,
num arremedo de honraria,
troça, malícia e zombaria,
as grandes e inalteráveis
 perguntas humanas.


Tela de Jullian Gallasch
Herdeira universal
das dúvidas e do espanto,
em lampejos de entendimento
e solfejos de intuição,
ouço a música sacra
e profana do mundo.


Numa atmosfera quase mística,
celebro as possibilidades
 dos dois pontos
e do travessão. 



Pastora, no labirinto,
sigo o fio de luz do oriente.
Esqueço as perguntas,
o pasmo da vertigem
e rendo-me ao caminho
apontado pela estrela.


Volto ao pastoreio.
A água ainda marulha,
as ovelhas-pensamento
mastigam o verde
 e o eterno recomeço.




Celina Rabello – BH, 14/08/17







terça-feira, 18 de julho de 2017




APRENDI A LER?




Aprendi a ler.
Aprendi a ler?
A história não era a minha,
a história não era a nossa.
Os cartazes mostravam uma loirinha
que tinha avó e automóvel.
Eu não tinha avó,
que dirá automóvel...
Minhas meias eram pretas
e não estavam furadas.
Meu doce preferido não era o de abacaxi.



Aprendi a ler.
Decifrava facilmente letras e palavras.
Confesso que me encantei com a Lili.
Ela falava diretamente comigo.
Pensava: - por que eu sou tão diferente dela?


Aprendi a ler.
Na minha classe, carteiras separadas
com as crianças mais lentas ao aprender.
Eu não gostava daquilo. Perguntava-me:
- por que isso? - pra que isso?
Eu já lia alguma coisa
e não sabia o quê.











Aprendi a ler? – Aprendi a sonhar.
Os romances falavam de outra realidade.
Um pratinho de doce, um copo d’água,
 um livro e a viagem começava.
Estava seduzida irremediavelmente.
No silêncio, ruminava meu encantamento,
assombrada com o que morava nos livros.


Aprendi a ler.
O professor continuava a aula após o sino.
Perguntei: - por quê?
Fui suspensa três dias das aulas.
A injustiça saltou-me aos olhos
 e rolou em cachoeira.


Aprendi a ler?
Li novos autores, outros pontos-de-vista.
Vi a polícia agindo na FAFICH.
Conheci moças ricas e elegantes na PUC,
iam de carro pra faculdade.
Eu pegava oito ônibus por dia. Por quê?



Comecei a soletrar-me
e a soletrar o mundo.
Ensimesmada, decodificava palavras
 e desenovelava textos e sentidos.
As possibilidades...
A impossibilidade.
Descobri a senha para atravessar o rio.



Na leitura, ainda sou aprendiz,
empaquei na etimologia da palavra homem.
A porta aberta à compaixão, no casarão da Glória,
ensinou-me mais que os clássicos.
As relações de trabalho e as afetivas
confirmaram-me que a leitura
se faz da esquerda pra direita
e que meu coração sempre
 bateu à esquerda do peito.


O meu ponto-de-vista,
 apenas a vista de um ponto,
leitura diária na minha agenda.
Aprendi a ler?
















Celina Rabello – BH 10/07/17