quarta-feira, 19 de dezembro de 2018






O RELÓGIO




Relógios repetem
o mesmo compasso há séculos.
Mas a cadência de agora
não é a que eu ouvia
quando a nossa  rua tinha murteiras
e os domingos não eram dias
 de se arear panelas.


A ciranda do relógio,
 com seu pêndulo em lira,
na sala de visitas,
era de doce ansiedade
misturada à imagem do presépio,
onde a fé, a ternura e a natureza
haviam construído uma gruta para o Amor.


No coração só estavam desenhados
o convívio da família, da escola,
os folguedos na rua,
os passeios na fazenda –
músicas registradas na memória.




Hoje, a pauta das horas
 eterniza a circunferência
de um tempo repartido
em tédio, esperanças amarelecidas
e algum fruto da alegria.


A disritmia do relógio
não garante o sonho da madrugada.
Mas o iridescente galo do Natal
da aurora abre as asas, e  anuncia
que o Menino faz, das cinzas,
renascer a fênix.






Celina Rabello – BH - 19/12/2018

terça-feira, 25 de setembro de 2018





SEIXO



Um seixo rola
no riacho cheio.
É areado, pega limo, muda de cor.


Vai aonde ninguém vai.
Às vezes não vai.
Para, estaca, sente.



Partilha com as poças
a luz, a sombra, o verde.
Na sua estrada líquida
emerge, às vezes, afunda.
Rola depressa, devagar, ritmado.
Simplesmente segue.
No bamboleio do movimento,
na água derrama sua mutável forma.



Celina Rabello – 1º de março de  2018


sexta-feira, 14 de setembro de 2018






CRISTAL  LÍQUIDO



Águas cristalinas,
cristais e água.
Pureza translúcida,
transparente refulgência .





Vê-se através.
O lodo, o musgo, as  pedras
ondulam e cintilam.
A vida em euforia
borbulha e dança na nascente,
nas corredeiras, nos leitos calmos.


Espelho para Eros, Ares e Narciso.
Tudo se debruça, se banha, se vê.
Corrente, a água lava, leva, louva!
Chega às fontes e chafarizes,
testemunha as prosas, as pragas, as preces.




À arte alimenta.
Aos marcados purifica.
Aos sedentos alivia.
E corre límpida, fresca,
cristal e pérola.
Diamante líquido na poesia.



Celina Rabello – BH 13/09/2018

domingo, 5 de agosto de 2018





MADRUGADA



Madrugada fria.
A chuva bate nos vidros, na rua.
Molha meus pensamentos,
acorda lembranças,
encharca minha alma.




Fecho os olhos pra ver.
A chuva escorre no asfalto.
Lava a poeira de agosto,
 mas não lava o lixo
da desigualdade social,
não carrega as injustiças,
as dores dos despossuídos,
dos solitários, dos desamores.


No país, no continente, no planeta,
alguém mais aguarda a aurora.
Que pensamentos embaçam seu sono?
Alguma angústia aguilhoa sua cama?
Que esperanças velam sua noite?




À escuridão segue a luz.
Ânima e animus se animam
lavados pela chuva e pela alvorada.
Floresce o dia, brota a folha,
o verso acorda e estampa a poesia.


Foto de Marcus Vinícius Campos Bandeira - Ville de Québec



Celina Rabello - Belo Horizonte, 04/08/2018

domingo, 1 de julho de 2018






ÁRVORE DE SONHOS




Vivo das translúcidas águas
de um rio que corre
em música, imaginação e memória.
Vivo desses infinitos fugazes
que nutrem a alma no cerrado da vida.


Os sonhos me habitam.
Nascem dessas águas correntes
maltratadas pelas mãos do tempo.
Nutrem-se nos lençóis freáticos
da alma que desconhece limites,
distância, espaço, calendário.
Que sabe apenas da eternidade,
só do ilimitado das possibilidades.





                                                                                       Primeiro uma folhinha se mostra;
mais uma, mais outra e outra.
Um galho inteiro se equilibra
entre a memória e o desejo.
Aparece mais um galho, outro
e a árvore está formada e forte.


As tempestades, os ventos
discutem com a árvore-sonho.
Arrancam-lhe as folhas, açoitam-lhe os galhos,
esfregam-lhe, no tronco, pedaços de outros sonhos.
Ela resiste e carrega suas marcas – hieróglifos
sulcados em sua alma e em seu corpo.
Decifra-os um a um no diálogo com a esfinge.
A história continua,
ora vence a árvore, ora o vento.
Mas ela sempre pende para a esquerda.





Celina Rabello – BH, 1º de julho de 2018





“A PEDRA DO REINO”




No meu reino tem uma pedra
alta, áspera, enorme.
Tudo domina como uma cátedra
esse paredão escuro e disforme.


A cada dia, olha-me o desafio:
desfraldar no alto do rochedo
a bandeira tecida fio a fio
com as cores da coragem e do medo.


A escalada é árdua, muito dura.
Subo alguns metros, avanço um pouco
e desvelo como uma pintura,
o mundo que eu pensava fosse ôco.


Mas tropeço numa ponta solta
e com tristeza e grande pasmo,
de novo, volto onde estive antes,
decepcionada e também envolta
em cansaço e forte marasmo.




Contudo, como Sísifo, recomeço.
Junto forças, ânimo, me apresso.
Para o pico da pedra alcançar
é preciso esquecer os desacertos,
seguir em frente, recriar
a fé, o foco, a fecunda esperança
da bandeira lá no topo hastear.


Aprendo a cada dia na escalada:
importante é o rumo, não a velocidade;
a conquista se dá na firme lida,
um passo, outro passo e, na verdade,
que a pedra, também, é conquistada
nos tombos e nos tropeços da jornada.





Nota: O nome deste poema foi inspirado em "A PEDRA DO REINO" - nome mais conhecido do romance de Ariano Suassuna: "Romance d'A PEDRA DO REINO e o príncipe do sangue do vai-e-volta", editora José Olympio. 


Celina Rabello – BH, 30 de junho de 2018

sexta-feira, 1 de junho de 2018




  AEROPORTO  E  NATAL







Diferentes rostos colados na telinha.

As pessoas não se olham.

Dramas, romances, conflitos

 e sonhos se escondem.



As mercadorias atraem os olhares.

As malas se arrastam atrás

da alegria perdida.

O encontro verdadeiro trocado

pelo prazer dos presentes,

 pelo adiamento das dificuldades

 mal resolvidas.





O despojamento do presépio,

a inocência do Menino,

a determinação de Maria,

a confiança de José,

ignoradas e substituídas

pelas compras,

pelo prazer imediato,

pela competitividade e

pelo poder do dinheiro.



A solidariedade fica no sorriso

mediado pelas trocas.

O encontro se contenta

com o toque dos brindes.



Natal, Navidad, Christmas –

A essência esquecida revive.

O Menino insiste em amar.

O convite para a sua celebração

parte em direção aos corações e almas.

Poucos responderão.

Mas, um que celebra a dádiva do AMOR

faz  sorrir o Presépio inteiro.






Celina Rabello

MIA – Miami International Airport,  23/12/2016

terça-feira, 22 de maio de 2018




VIÉS


De cabeça pra baixo
a perspectiva muda
e a sozinhez também.





Qual o sentido de tantas coisas prosaicas?
Contas a pagar,
tirar o pó dos móveis,
comida por fazer...


Não me conforta
ter um sapato de festa,
um brinco de princesa,
a Tunísia estar à beira do Mediterrâneo
ou termos, pelo menos, cinco sonhos por noite.




Desejo as vivências e não, o mapa.
Quero o pé no regato,
as risadas por coisa alguma,
o frio na barriga
antes do primeiro encontro,
dançar até a cabeça girar.


Fernando de Noronha marejando azul,
as tulipas explodindo cores em Ottawa,
a cachoeira cantando no Caraça,
a Ponte dos Amores me aguardando,
as ilhas gregas vestidas de azul turquesa
e a palidez dessa mesmice me estrangulando.


Quero do desfile humano
o descompasso,
do horizonte, ultrapassar a linha,
das fronteiras, todas as pontes,
o marulhar e o frescor das fontes e,
de Minas, a vontade de libertar a liberdade.




Quero da música o baile,
da noite, os becos e as serenatas
e o orvalho sobre as folhas.
Dos pássaros, o trinado, o voo.


E a voz da minha mãe ressoa:
- “O tempo urge!”
O tempo... o tempo... o tempo...
A vida não tem hora certa ou garantia.


Resignificar o relógio, como Dali.
No vento, soltar a pipa
e, no fio do equilíbrio, dançar
com a sombrinha do sonho.




Subir e subir e subir e me perder
e me encontrar no poder
desta água que parteja
o viés de um mundo transmutado,
no reflexo deste copo ensaboado
 e enxaguado.



Celina Rabello  BH - 19/05/2018